Nas duas colunas anteriores, analisamos o posicionamento do TJ-SP e do STJ em relação à possibilidade jurídica de o empresário rural sem registro na junta comercial requerer recuperação judicial. No texto de hoje, começamos a analisar qualitativamente os argumentos que fundamentam as posições que advogam em cada um dos lados dessa questão. Iniciaremos pela importância do conceito de empresário rural.
Sabe-se que, historicamente, o Direito Comercial surge junto com as mudanças econômicas e políticas que culminaram na formação do capitalismo moderno[1]. Esse percurso culminou no aprendizado de que o atual Direito Empresarial é um ramo jurídico tão imbricado com a economia que precisa com ela compartilhar institutos[2][3]. Esse é o caso do conceito de empresa, que tem sua origem na economia, mesmo que traduzido para o Direito a partir de seus perfis (subjetivo, objetivo e dinâmico)[4].
O agronegócio não ficou alheio à evolução econômica. Mudanças importantes ocorreram no setor, principalmente após a Revolução Verde, que levou tecnologia científica e administrativa para a produção rural[5]. O resultado desse processo é particularmente relevante no Brasil, já que o agronegócio tem representado cerca de 20% do PIB nos últimos anos[6], além de ser um setor altamente competitivo internacionalmente[7].
No ordenamento jurídico brasileiro, a expressão empresa rural já constava no artigo 4º do Estatuto da Terra, de 1964. A concepção adotada, entretanto, não representava o início de um regime empresarial nas atividades agrossilvipastoris, mas se vinculava aos fins sociais de reforma agrária e política agrícola daquela legislação[8].
A aproximação do regime jurídico empresarial às atividades rurais adveio com o Código Civil de 2002, em que houve a adoção da teoria da empresa em substituição à dos atos de comércio. Marcado pela forte influência do Código Civil italiano de 1942, em que o conceito de empresário rural está nos artigos 2.082 e 2.135, coube ao artigo 966 e 971 do Código Civil de 2002 demarcar as características do conceito de empresário para o Direito brasileiro. Dele, se extrai uma dimensão diferente de empresário rural observado nas legislações anteriores. Fernando Scaff aponta que se mudou “[…] fortemente a perspectiva empregada: o que importa é não mais, fundamentalmente, a propriedade do imóvel rural, mas sim a possibilidade de explorá-lo racionalmente e de executar suas finalidades de produção de gêneros vegetais e animais”[9]. A ênfase do conceito de empresário está no modelo de processo produtivo adotado: aquele marcado pela profissionalização, organização e destinação dos produtos ao mercado.
Além disso, nos alinhamos à doutrina italiana quando considera que o fenômeno econômico da empresa é indiferente do porte do empreendimento. Isso implica que até mesmo pequenos produtores rurais, como aqueles definidos na Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais[10], podem se revestir da qualidade de empresários rurais. Para isso, basta adotarem um regime de produção baseado na “empresariedade”.
Da mesma forma, não há que se falar em níveis de organização. A distinção relevante está entre o trabalho organizado ou não. Alberto Asquini[11] concebe que:
[…] O pequeno empresário distingue-se do empresário ordinário, somente pela prevalência que, na organização da pequena empresa, tem o percentual representado pelo trabalho próprio do empresário e de seus familiares, em relação àquele representado pelo trabalho alheio ou mesmo pelo capital próprio ou alheio.
Outra questão é o tratamento diferenciado e mais benéfico regido pelo artigo 970 do Código Civil de 2002, dispositivo que explicitamente utiliza a expressão “empresário rural”. Essa diferenciação entre empresa rural e mercantil também está presente no Código Civil italiano, cuja fundamentação está baseada na diferença das atividades desenvolvidas e dos riscos que possuem. O empresário rural também suporta o risco dos ciclos biológicos existentes nas atividades dotadas da característica de “agrariedade”[12]. Não se trata, dessa forma, de ausência de organização na atividade do empresário rural.
Pode-se inferir, portanto, que empresário rural é aquela pessoa física ou jurídica que compartilha das características da “empresariedade”, no que tange ao modo de produção e destinação dos produtos e serviços, e da “agrariedade”, ou seja, gere produção de atividade que envolve o desenvolvimento de um ciclo biológico.
Referência Bibliográfica
[1] FONSECA, Priscila M. P. Corrêa; SZTAJN, Rachel. Direito da empresa: artigos 887 a 926 e 966 a 1.195. In.: AZEVEDO, Álvaro Villaça. (coord.). Código Civil comentado. v. 11, São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 80-81.
[2] BULGARELLI, Waldirio. A teoria jurídica da empresa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985.
[3] Nesse sentido, interessantes as palavras de Rubens Requião: “O conceito jurídico de empresa se assenta nesse conceito econômico. Em vão os juristas têm procurado construir um conceito jurídico próprio para tal organização. Sente-se em suas lições certo constrangimento, uma verdadeira frustração por não lhes haver sido possível compor um conceito jurídico próprio para empresa, tendo o comercialista que se valer do conceito formulado pelos economistas. Por isso, persistem os juristas no afã de edificar em vão um original conceito jurídico de empresa, como se fosse desdouro para a ciência jurídica transpor para o campo jurídico um bem elaborado conceito econômico”.
[4] ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 35, n. 104, p. 109-126, out./dez., 1996.
[5] ZYLBERSTAJN, Decio. Administração de sistemas de base agrícola: análise de fatores críticos. Revista de Administração, São Paulo, v. 48, n. 2, abr./jun. 2013.
[6] CEPEA; CNA. Participação do agronegócio no PIB do Brasil. Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx. Acesso em: 25.mai.2019.
[7] PWC. Agribusiness in Brazil: an overview. Disponível em: https://www.pwc.com.br/pt/publicacoes/setores-atividade/assets/agribusiness/2013/pwc-agribusiness-brazil-overview-13.pdf. Acesso em 24.mai.2019.
[8] TRENTINI, Flavia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 20.
[9] SCAFF, Fernando F. Aspectos fundamentais da empresa agrária. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 59.
[10] A Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimento Familiares Rurais (Lei n. 11.326/2006) trouxe para o ordenamento o conceito de empreendedor familiar rural. Em regra, são aqueles que detém área de até 4 módulos fiscais, utilize majoritariamente mão-de-obra familiar, atenda a um percentual mínimo da e dirija seu empreendimento com sua família (art. 3º).
[11] ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 35, n. 104, p. 109-126, out./dez., 1996. p. 115.
[12] Em 26 de maio de 2017, foi publicado no Conjur texto sobre o risco no Direito Agrário e a teoria de Mariagrazia Alabrese. Vide: TRENTINI, Flavia. Reflexões sobre o risco no Direito Agrário e o livro de Mariagrazie Alabrese. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-26/direito-agronegocio-risco-direito-agrario-livro-mariagrazia-alabrese. Acesso em: 24.mai.2019.
Fonte: ConJur
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Jonathan Spagnoli
É acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia - Mestrado Profissional da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Faveni. Bacharel em Direito pela Unicesumar. Possui Certificação de Especialista Java EE 6 Enterprise Architect Oracle Sun Microsystems, Microsoft Certified Systems Engineer, Zend Certified Engineer, Certified Ethical Hacking. Atuou como Desenvolvedor de Sofware no CPD Sul do Grupo New Holland Brasil, Professor do Curso de Extensão da Faculdade UNIMEO - CTESOP em Assis Chateubriand. Instrutor em diversos cursos de tecnologia e computação.