Quase toda mulher já foi vítima de um assédio sexual. Comumente conhecido como “cantadas de rua”, o assédio sexual pode ser entendido como uma manifestação sexual ou sensual alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. São abordagens grosseiras, cantadas abusivas e posturas inadequadas que causam constrangimento, humilhação e medo. Podem vir na forma de palavras, gestos, olhares, toques não consentidos, entre outros.
Muitas vezes, nossa sociedade interpreta o assédio sexual como paquera, elogio ou brincadeira, naturalizando um comportamento machista que é muito danoso para nós mulheres. Não raro, a culpa pelo assédio sofrido é colocado na própria vítima, como se suas roupas, o local onde está, o horário em que está na rua, a falta de companhia masculina, entre outros, fossem motivos para justificar a atitude do agressor.
O assédio sexual é mais uma das manifestações da desigualdade de gênero em nossa sociedade. Trata-se, em verdade, de uma manifestação de poder do homem sobre a mulher, através da objetificação sexual de nossos corpos. É o entendimento de os corpos femininos quando estão em espaços públicos também são públicos, afinal, mulheres “direitas” devem se recatar ao lar. Embora o assédio contenha caráter sexual, a verdadeira intenção do agressor não é “paquerar”, e sim afirmar sua masculinidade e poder.
Uma pesquisa realizada pela ONG Think Olga com quase 8 mil mulheres constatou que 99,6% das participantes já foram assediadas. 83% delas não achavam legal, 90% já trocaram de roupa antes de sair de casa pensando onde iam por causa de assédio e 81% já haviam deixado de fazer algo (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra, sair a pé) por esse motivo. Ainda, 85% das entrevistadas afirmaram já terem tido seus corpos tocados sem consentimento.
O assédio sexual segundo a lei
Infelizmente, ainda não temos no Brasil uma lei que caracterize a cantada indesejada como um crime próprio. Diversos países como Argentina, Portugal, Bélgica, Índia, Peru e Reino Unido já prevêem esse tipo de crime e têm inclusive penas bem severas, chegando a prisões de até 7 anos.
Mas isso não significa que esse tipo de atitude fique impune no nosso país. Por mais que a “cantada de rua” seja tão naturalizada, existem instrumentos legais que podem ser usados para coibir esse tipo de atitude.
Temos em nosso ordenamento jurídico uma contravenção penal (que é um delito de menor potencial ofensivo, com penas muito baixas) chamada “importunação ofensiva ao pudor”. Consiste em importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor. Normalmente, é o assédio cometido através de palavras (quando alguém diz coisas desagradáveis de teor sexual), ou através de olhares e gestos.
Dependendo do modo como se der essa “cantada”, pode ainda configurar ato obsceno, como por exemplo, se o agressor mostrar as partes íntimas em local público ou simular masturbação, sexo oral e outros. Essa atitude já é considerada como crime, e está prevista no Código Penal, com pena de detenção de três meses a um ano ou multa.
A forma mais grave de assédio é a do crime de estupro, que pode se configurar caso venha a ocorrer toque de partes íntimas ou seios da mulher sem seu consentimento, e até mesmo o beijo à força. Isso porque nossa legislação prevê que o crime de estupro não se consuma apenas quando há sexo com penetração, mas também quando ocorre a prática de qualquer outro “ato libidinoso”. A pena pode chegar até dez anos de prisão.
Por fim, é importante esclarecer uma confusão comumente cometida. Nosso Código Penal prevê a existência de um crime chamado “assédio sexual” (artigo 216-A). Porém, não se trata do assédio em forma de “cantada de rua”, e sim de uma figura muito específica ocorrida apenas no contexto da relação de trabalho. Sua caracterização se dá por constrangimentos e ameaças com a finalidade de obter favores sexuais, feita por alguém que se favorece de posição hierárquica superior à vítima, ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Como denunciar
Uma mulher que foi assediada sexualmente pode registrar boletim de ocorrência em qualquer delegacia de polícia (preferencialmente uma delegacia da mulher). Não é obrigatório estar acompanhada de advogada(o) para realizar a denúncia, embora seja altamente aconselhável. Isso porque vivemos em uma sociedade machista, na qual o pensamento de que o assédio se trata de paquera ou elogio muitas vezes se reflete também nas instituições policiais e judiciárias, fazendo com que o caso daquela mulher possa ser tratado como algo de pequena importância ou até mesmo tratado com a falta de tecnicidade necessária.
Na hora do registro, é importante estar atenta ao crime que está sendo anotado. Cada crime tem seu rito próprio para ser investigado, processado e julgado e, caso seja registrado de forma equivocada, poderá até mesmo inviabilizar o acesso da mulher à justiça.
É comum que, pela falta de preparo para lidar com este tipo de crime, a conduta seja registrada como “injúria” (que é o ato de ofender alguém). O problema disso é que a injúria é um crime de ação penal privada, ou seja, cabe à mulher contratar uma advogada e mover sozinha uma ação contra o agressor. Desta forma, o simples registro do boletim de ocorrência não basta para que haja alguma condenação.
Já os tipos descritos acima (importunação ofensiva ao pudor, ato obsceno e estupro) são de ação pública, ou seja, é o Estado quem investiga e processa o autor do crime. Apenas para o caso de estupro é preciso que a mulher deixe expressa a sua vontade de processar o agressor, fazendo o que chamamos de representação. Para os demais, basta o boletim de ocorrência para que isso ocorra.
Uma outra dificuldade de se denunciar esse tipo de crime é que, como muitas vezes ele é praticado por estranhos, é difícil saber quem é o autor. Raramente a mulher consegue pegar os dados da pessoa que a assediou, o que dificulta que realmente ocorra alguma investigação e processo penal. De toda forma, o registro da ocorrência é válido, até para fins de estatística, o que pode pautar políticas públicas e até mesmo edição de leis mais firmes sobre o assunto.
A segunda dificuldade é a obtenção de provas. Apesar de ocorrer em locais públicos, nem sempre a mulher consegue registrar de alguma forma o assédio sofrido. Por isso, se possível, é recomendável contar com testemunhas. Imagens de câmeras de segurança também podem servir. Da mesma forma que quando desconhecida a autoria do crime, mesmo a mulher não tendo provas do ocorrido, não deve considerar este fator um impedimento para registrar a denúncia.
Apesar das barreiras sociais e institucionais, é muito importante denunciar esse tipo de atitude, pois dizer não ao assédio é se impor e não aceitar a objetificação sexual da mulher. É afirmar que mulheres têm o controle sobre sua sexualidade e expressão, e que somos livres para andar com a roupa que quisermos nos locais onde quisermos.
Fonte: Braga&Ruzzi
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Marisa Vendruscolo
É Advogada Tributarista e Bacharela em Direito pela Universidade Cesumar de Maringá. Conciliadora Judicial pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Capacitação em Fundamentos da Mediação Comunitária, pela Escola Nacional de Mediação e Conciliação (ENAM). Capacitação em Mediação Judicial ( NUPEMEC/PR e CNJ). Capacitação em Justiça Restaurativa pela Universidade Estadual De Maringá/PR (UEM).Cursou Licenciatura em Química pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Cursando Pós Graduação em Docência do Ensino Superior pela Faculdade FAVENI.