Tempo de leitura: 15 minutos

Existem diversas modalidades de saque do FGTS disponíveis. Algumas criadas recentemente (como o saque imediato e o saque-aniversário) e outras desconhecidas. Uma destas é o saque-calamidade, que pode ser utilizado no atual cenário de pandemia.

Em tempos de quarentena devido à pandemia do Covid-19, uma dentre as preocupações acaba sendo relacionada à manutenção da renda das famílias durante o período de isolamento. Diversas propostas governamentais nas mais diversas áreas – trabalhista, tributária, assistencial, previdenciária etc. – vêm surgindo praticamente todos os dias, buscando implementar soluções emergenciais. Algumas destas propostas dizem respeito ao saque do FGTS em casos de calamidade pública, como na que estamos agora vivenciando. Ocorre que a legislação atual e a jurisprudência dos tribunais já garantem os direitos fundiários do trabalhador por causa da Covid-19.

O FGTS, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, foi criado em 1966 como uma proteção ao trabalhador demitido sem justa causa. Em regra, o empregador é obrigado a depositar mensalmente em uma conta bancária aberta na Caixa Econômica Federal (CEF), em nome do trabalhador, o equivalente a 8% de seu salário. Além da demissão, a lei do FGTS traz outras hipóteses em que o trabalhador poderá sacar os valores depositados, sendo as mais comuns a compra ou financiamento da casa própria, ou quando a conta não recebe depósitos por 3 anos seguidos, ou quando o trabalhador se aposenta. Recentemente, o governo incluiu a partir de 2020 o chamado saque-aniversário, para que trabalhadores que optarem por esta modalidade possam sacar anualmente uma determinada quantia do seu saldo na data de seu aniversário.

Entretanto, uma das modalidades de saque menos conhecidas, a qual chamarei de saque-calamidade, ocorre quando o trabalhador passa por necessidades pessoais devido a situações de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidas pelo Governo Federal, conforme estipula o artigo 20, inciso XVI, da Lei 8.036/90:

Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:
XVI – necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento, observadas as seguintes condições:
a) o trabalhador deverá ser residente em áreas comprovadamente atingidas de Município ou do Distrito Federal em situação de emergência ou em estado de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo Governo Federal; (grifei)
Aqui surgem duas perguntas pertinentes: o que é desastre natural? poderia a pandemia também ser considerada desastre natural? As respostas a essas perguntas definem diretamente se o saque-calamidade também pode ser usado agora. Vejamos as respostas dadas pelo governo, pelos especialistas no tema e pelo judiciário.

Vamos primeiro à resposta oficial do Governo, adotada formalmente pela CEF, baseada no Decreto 5.113/90, publicado no mesmo ano da Lei 8.036/90 especialmente para regulamentar o inciso XVI do artigo 20. Em seu artigo 2º, o decreto traz nove situações legalmente reconhecidas como desastre natural:

Art. 2º Para os fins do disposto neste Decreto, considera-se desastre natural:
I – vendavais ou tempestades;
II – vendavais muito intensos ou ciclones extratropicais;
III – vendavais extremamente intensos, furacões, tufões ou ciclones tropicais;
IV – tornados e trombas d’água;
V – precipitações de granizos;
VI – enchentes ou inundações graduais;
VII – enxurradas ou inundações bruscas;
VIII – alagamentos; e
IX – inundações litorâneas provocadas pela brusca invasão do mar.

Repare que todas as situações estão associadas exclusivamente a água. É com base nesse artigo que a CEF recusa administrativamente os pedidos de saque-calamidade por epidemias ou pandemias, simplesmente por não constarem como hipóteses definidas como desastres naturais. Inclusive, o próprio aplicativo do FGTS, na opção Meus Saques >>> Outras Situações de Saques >>> Calamidade Pública >>> Solicitar saque FGTS, aparece disponível apenas para alguns municípios (do ES, MG, MT e RJ) que sofreram recentemente enchentes, enxurradas e inundações.

Neste ponto, é preciso admitir que a CEF, ao negar os pedidos de saque-calamidade por Covid-19, apenas está seguindo estritamente o que determina a lei e o decreto. Porém, não é o mesmo posicionamento adotado pelo Poder Judiciário.

Em primeiro lugar, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou diversas vezes que a lista do artigo 20, da Lei 8.036/90, não é taxativa, isto é, limitada apenas às situações definidas por escrito na lei; mas sim exemplificativa, isto é, que outros itens podem ser incluídos em uma interpretação extensiva do caso concreto. Perceba que, antes do STJ se manifestar sobre a lista de desastres naturais do decreto, ele se manifestou sobre as hipóteses de saque do FGTS da lei, definindo que elas vão além daquelas estipuladas por escrito.

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO NÃO CONFIGURADA. FGTS. UTILIZAÇÃO DO SALDO PARA SITUAÇÃO NÃO PREVISTA NO ART. 20 DA LEI Nº 20.039/90. POSSIBILIDADE. 2. É possível o saque do FGTS mesmo nos casos não previstos no art. 20 da Lei 8.036/90, tendo em vista que o rol de hipóteses ali apresentadas não é taxativo, devendo prevalecer o fim social da norma. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 10.486/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 30/08/2011) (grifei)

ADMINISTRATIVO. FGTS. ART. 20 DA LEI N. 8.036/90. HIPÓTESES DE LEVANTAMENTO DOS VALORES DEPOSITADOS NA CONTA VINCULADA AO FUNDO. ROL EXEMPLIFICATIVO. POSSIBILIDADE DE SAQUE, EM CASO DE REFORMA DE IMÓVEL, AINDA QUE NÃO FINANCIADO NO ÂMBITO DO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. PRECEDENTES. INTERPRETAÇÃO QUE ATENDE AOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.

1. A quaestio iuris gira em torno da verificação das hipóteses de levantamento de valores depositados em conta vinculada ao FGTS, de acordo com o art. 20 da Lei n. 8.036/90. A Caixa Econômica Federal alega que é incabível a utilização de saldo do FGTS para pagamento de reforma de imóvel não financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação, já que o rol de hipóteses de saque estaria previsto em numerus clausus. 2. Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que o art. 20 da Lei n. 8.036/90 apresenta rol exemplificativo, por entender que não se poderia exigir do legislador a previsão de todas as situações fáticas ensejadoras de proteção ao trabalhador, mediante a autorização para levantar o saldo de FGTS. Precedentes. partindo dessa premissa, dois outros pontos devem ser resolvidos in casu. (…) (REsp 1251566/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe 14/06/2011).”(grifei)

Desta forma, não só o STJ, mas a maioria dos tribunais pelo país, vêm determinando o saque do FGTS quando o trabalhador passa por necessidades financeiras, mesmo em situações não abarcadas na lei do FGTS. Isso porque não é razoável acreditar que a lista elaborada pelo Legislativo consiga abarcar todas as situações fáticas urgentes em que o trabalhador e sua família necessitem de apoio financeiro.

É o caso da sentença proferida na Ação Civil Pública (ACP) nº 0801772-78.2019.4.05.8000, da Justiça Federal de Alagoas, específica para os moradores de área de risco do bairro Pinheiros, em Maceió, cujas ruas e casas apresentavam trincas, fissuras e rachaduras por causas naturais desconhecidas com risco de desmoronamento, e que determinou a liberação pela CEF do saque do FGTS. Sob o mesmo fundamento, o STJ também já determinara o saque para a reconstrução de moradia abalada por vendaval.

ADMINISTRATIVO. LEVANTAMENTO DE FGTS PARA RECONSTRUÇÃO DE MORADIA ABALADA POR VENDAVAL. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. A enumeração do art. 20 da Lei 8.036/90 não é taxativa. Por isso, é possível, em casos excepcionais, a liberação dos saldos do FGTS em situação nele não elencada. Precedentes. 2. O direito à moradia e o princípio da dignidade da pessoa humana autorizam o saque na hipótese em comento, em que casa em que reside o fundista foi atingida por vendaval, tendo sido constatado risco de desabamento. 3. Recurso especial improvido. ..EMEN: (RESP – RECURSO ESPECIAL – 779063 2005.01.46755-6, TEORI ALBINO ZAVASCKI, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:04/06/2007 PG:00309 ..DTPB:.) (grifei)

Da mesma forma, embora mais ampla, a ACP nº 1005432-88.2019.4.01.3900, movida pela Defensoria Pública da União (DPU) na 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Estado do Pará, cuja sentença da juíza Hind Ghassan Kayath, determinou em 03/03/2020 que a CEF liberasse os saques para todos os trabalhadores do Brasil em caso de incêndio involuntário da casa própria.

Em todos os julgamentos, os fundamentos jurídicos para a liberação do saque do FGTS são a garantia dos direitos fundamentais do trabalhador, como o da moradia, e a aplicação da finalidade social da norma.

Um segundo argumento jurídico que pode ser usado além da não taxatividade da lista de hipóteses de saque do FGTS do artigo 20, inciso XVI, da Lei 8.036/90, seria o da não taxatividade da lista de desastres naturais do artigo 2º, do Decreto 5.113/90. Lembre-se que o decreto elenca apenas nove tipos de desastres naturais para a liberação administrativa do saque-calamidade.

Isso porque não se pode presumir como aceitável que todos os desastres naturais obrigatoriamente estejam ligados a enchentes, enxurradas ou inundações. Existe uma gama de outros desastres naturais não abarcados pelo decreto. Quem faz tal afirmação é a maior autoridade científica mundial em desastres, o CRED (Centre for Research on the Epidemiology of Disasters), que criou a classificação internacional de desastres EM-DAT, no The International Disaster Database, e que classifica desastres nos seguintes tipos e subtipos.

1. Desastres naturais

1.1. Geofísicos: terremotos, movimentos terrestres e vulcões

1.2. Meteorológicos: temperaturas extremas, neblina e tempestades

1.3. Hidrológicos: inundações, deslizamentos de terra e ações de ondas

1.4. Climatológicos: secas, explosões de lagos glaciais e incêndios

1.5. Biológicos: epidemias, infestação de insetos e acidentes com animais

1.6. Extraterrestres: impacto de meteoros e clima espacial

2. Desastres tecnológicos

2.1. Acidentes industriais

2.2. Acidentes de transporte

2.3. Acidentes mistos

A tabela EM-DAT serve como base para diversos países criarem suas classificações nacionais de desastres. Um deles, o Brasil, criou a Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE), no Anexo V da Instrução Normativa (IN) nº 02/2016, do extinto Ministério da Integração Nacional (MI), hoje Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). A IN estabelece procedimentos e critérios para a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública pelos Municípios, Estados e pelo Distrito Federal, e para o reconhecimento federal das situações de anormalidade decretadas pelos entes federativos.

A COBRADE amplia a EM-DAT, incluindo grupos, subgrupos, tipos e subtipos, determinando um código para cada categoria de desastre. O código COBRADE 1.5.1.1.0 é usado para identificar os desastres naturais biológicos por epidemias de doenças infecciosas causadas por vírus. Ou seja, o próprio Governo Federal reconhece oficialmente a epidemia como um desastre natural. E, como a pandemia (uma mesma epidemia constatada em vários países) é uma ampliação da epidemia (surtos da mesma doença em diversas regiões), então a pandemia do Covid-19 se enquadra no código 1.5.1.1.0 da COBRADE.

Como pode ser observado na comparação das tabelas internacional EM-DAT e brasileira COBRADE, a lista de desastres naturais do artigo 2º do Decreto 5.113/90 abarca apenas alguns dentre os tipos de desastres meteorológicos e hidrológicos. Por isso, a lista deve ser considerada como meramente exemplificativa. Imagine rejeitar o pedido do trabalhador do saque-calamidade do FGTS em caso de terremotos ou incêndios, desastres naturais que ocorreram em anos recentes em diversos lugares do Brasil, apenas porque não constam no decreto.

Assim, seja por considerar que as hipóteses de saque do FGTS vão além daquelas estipuladas no artigo 20 da Lei 8.036/90 ou seja por considerar que a lista dos desastres naturais vai além das listadas no artigo 2º do Decreto 5.113/90, o trabalhador faz jus ao saque-calamidade do FGTS neste momento crítico.

Outro requisito para o saque-calamidade do FGTS é a decretação do estado de calamidade pública pelo Governo Federal. Em 20 de março de 2020, foi reconhecido, em âmbito federal, estado de calamidade pública por causa do Covid-19 em todo Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 6. Vários estados e municípios estão seguindo a mesma linha declarando estado de calamidade pública em seus respectivos territórios, como Goiás (Decreto Legislativo nº 501, de 26 de março de 2020) e Anápolis (Decreto nº 44.745, de 01 de abril de 2020).

No momento, existem diversos projetos de lei para autorizar o saque-calamidade por Covid-19 administrativamente, direto na CEF, sem a necessidade de recorrer ao Judiciário. Provenientes da Câmara de Deputados temos o PL 647/20 e o PL 714/20 e do Senado Federal temos o PL 1.203/20. Também, em 06/04/2020, o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6371 no Supremo Tribunal Federal (STF) contestando a constitucionalidade da liberação dos saques do FGTS do art. 20 da Lei 8.036/90 somente após regulamentação legal futura das hipóteses. Está sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

Uma boa notícia é que o próprio Judiciário começa a tomar a iniciativa diante da morosidade legislativa. Em decisão recente (26/03/2020), a desembargadora Raquel de Oliveira Maciel, da 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 1ª Região, determinou de ofício a expedição de alvará para saque de todo o montante depositado na conta FGTS de um trabalhador do Rio de Janeiro, por causa do Covid-19 (ROT 0101212-53.2018.5.01.0043).

Em tempo, o Governo Federal publicou no dia 07/04/2020 a Medida Provisória (MP) 946, extinguindo o Fundo PIS-Pasep e transferindo seus recursos para o FGTS. A MP também libera um saque imediato único, independentemente do número de contas que o trabalhador possua, de R$ 1.045,00, a partir de 15 de junho de 2020, por causa da pandemia.

Cabe ressaltar que esse saque não invalida os argumentos levantados anteriormente sobre o saque-calamidade, que continuam válidos independentemente de a MP ser, ou não, aprovada pelo Congresso Nacional nos próximos dias, com ou sem modificações no texto, ou se o trabalhador necessitar sacar um valor maior que um salário-mínimo ou se precisar realizar o saque antes de 15 de junho para sobreviver a esse momento de dificuldades.

Fonte: Jus.com.br