A Covid-19, sem dúvida alguma, é a maior chaga humanitária que o mundo já experimentou desde a Segunda Grande Guerra Mundial e será responsável pela maior crise econômica desde a Grande Depressão. A perspectiva de retração da economia mundial é de 3% até o final de julho, e ainda pode agravar-se. Assim não fosse, a pandemia, segundo Lawrence Summers, juntamente com os ataques terroristas ao World Trade Center (11 de setembro de 2001) e a Crise de 2008, faz parte dos três maiores choques globais do Século 21, sendo de longe o mais significativo.[1] As práticas utilitárias, o rentismo e os investimentos das nações na indústria dos combustíveis fósseis, armamentista, de produção de bens supérfluos e não essenciais acabou alocando trilionários recursos financeiros que seriam necessários para pesquisas aptas ao descobrimento de vacinas contra os vírus do estilo corona e, especialmente, para a fabricação de um antirretroviral de amplo espectro para o tratamento de pandemias como a atual.
Falta nos governos das nações e nos grandes grupos econômicos uma noção de solidariedade, de pertencimento e de uma cultura que pregue a resiliência para a vida neste novo normal. Aliás, não raras vezes, também falta prudência, serenidade e a necessária sensatez. Qualidades essas essenciais para o homem político idealizado por Aristóteles e imprescindíveis para o estadista pós-moderno inserido em uma sociedade de risco.
Relevante é o pensamento de cunho altruísta e generoso, capaz de responder aos desastres e as catástrofes humanitárias com base em constatações científicas, valendo-se de avanços tecnológicos. Este pensamento, justamente, guardado o distanciamento temporal, foi a base do Plano Marshall para reconstruir as nações e as economias arruinadas após a Segunda Guerra Mundial. A própria Organização das Nações Unidas foi criada neste cenário de reconstrução, pois é das crises que podem surgir os grandes avanços e as mudanças necessárias para a evolução da humanidade.
As externalidades negativas da pandemia, decorrente de uma zoonose[2], não são apenas econômicas, é bom que se grife, mas humanas, sociais, ambientais e políticas. Profundas são as chagas já deixadas pelo vírus que instalou-se na espécie humana via spillover.[3]
A ausência de observância dos princípios da precaução e da prevenção no plano internacional é a causa da dimensão alcançada pela Covid-19 globalmente.[4] Nações que adotaram medidas precautórias e preventivas estão sofrendo menos do que aquelas que realizaram um balanceamento entre o humano e o econômico e optaram pelo segundo, em uma visão de curto prazo. Caíram na armadilha do risco que abocanha e devora, sem nenhuma dificuldade, os pensamentos utilitários e imediatistas. Vieses, com efeito, são armadilhas perigosas nas decisões dos incautos nas políticas públicas. E o açodamento, não raras vezes, pode ser fatal e gerador do caos sem precedentes e de consequências imprevisíveis.[5]
A resposta contra a pandemia deve ser imediata, com uma perspectiva intergeracional, com o perdão da redundância, de longo prazo.[6] No momento, cabe aos governos informar à população sobre os riscos de contágio e da doença em si e buscar o achatamento das curvas de contaminação e das mortes priorizando a vida humana de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde e com as disposições do Regulamento Sanitário Internacional (RSI).[7]
Não se pode perder de vista que existem outras duas questões que precisarão ser enfrentadas com seriedade, por precaução e prevenção: o aquecimento global e a perda da biodiversidade. Quase um milhão de espécies da fauna e da flora podem ser extintas nos próximos anos[8] e a mudança climática vai aumentar a intensidade e a frequência de eventos extremos como secas, enchentes, ciclones, furacões, precipitações e o aumento dos oceanos com devastadoras consequências sociais, ambientais e econômicas.[9] Uma visão obscurantista, pré-medieval e de negação da ciência não é a solução, aliás, esta linha de pensamento, destituído do necessário equilíbrio, nos colocou nesta situação periclitante e de ampliação dos mega riscos.
A Organização Meteorológica Mundial divulgou recentemente dados preocupantes, mostrando que as temperaturas já aumentaram 1,1 graus centígrados acima dos níveis pré-industriais (1750).[10] Vivemos em um novo antropoceno, cujas consequências para a espécie humana são imprevisíveis. A Terra não necessita dos seres humanos, mas os seres humanos necessitam do meio ambiente, dos ecossistemas e dos serviços ambientais.[11] É intuitivo, chegando as raias da obviedade, que o desequilíbrio climático e ambiental pode levar a maior incidência e intensidade desta e de novas pandemias.
Abordar a mudança climática, a perda da biodiversidade e a Covid-19 simultaneamente e em escala suficiente requer uma resposta de governança efetiva na tutela da vida humana e não humana e dos correspondentes meios de subsistência. Nesta crise, salta aos olhos a real oportunidade para a construção de economias e de sociedades mais sustentáveis, menos egocêntricas, e mais inclusivas.
Aliás, a Agência Internacional de Energia Renovável divulgou dados que mostram que a transformação dos sistemas de energia poluente para limpa poderia impulsionar o PIB global para US$ 98 trilhões até 2050, gerando um aumento de 2,4% no mesmo se comparado aos padrões atuais de desenvolvimento carbonizado. Aumentar os investimentos em energia renovável, por si só, adicionaria 42 milhões de empregos em todo o mundo, e geraria uma economia em saúde oito vezes maior do que o custo do investimento e, assim, por certo, futuras crises seriam evitadas.[12]
Neste sentido, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, propôs, recentemente, seis ações positivas, em termos climáticos, para os governos considerarem em projetos de reconstrução das economias e da organização social após o fim desta primeira onda de pandemia da Covid-19:
Primeiro: como gastamos trilhões para nos recuperar do Covid-19, precisamos criar novos empregos e negócios por meio de uma transição limpa e verde. Os investimentos devem acelerar a descarbonização em todos os aspectos de nossa economia.
Segundo: onde o dinheiro dos contribuintes resgata empresas, ele deve criar empregos verdes, de crescimento sustentável e inclusivo. Não deve ser usado para salvar indústrias poluentes e de uso intensivo de carbono, sabidamente ultrapassadas.
Terceiro: o poder de fogo fiscal deve mudar as economias de cinza para verde, tornando as sociedades e as pessoas mais resilientes por meio de uma transição justa para todos e que não deixe ninguém para trás.
Quarto: os fundos públicos devem investir no futuro, fluindo para setores e projetos sustentáveis que ajudam o meio ambiente e o clima. Os subsídios aos combustíveis fósseis devem terminar e os poluidores devem pagar por sua poluição.
Quinto: O sistema financeiro global, quando molda políticas de infraestrutura, deve levar em consideração os riscos e as oportunidades relacionados ao clima. Os investidores não podem continuar ignorando o preço que nosso planeta paga por um crescimento insustentável.
Sexto: Para resolver ambas as emergências, precisamos trabalhar juntos como uma comunidade internacional. Como o coronavírus, os gases de efeito estufa não respeitam limites. O isolamento é uma armadilha. Nenhum país pode ter sucesso sozinho.[13]
Absolutamente lúcida e correta a colocação de Guterres, uma luz, ante os obscurantismos alimentados por fake news e contaminados por debates polarizados, com argumentos pré-secularizados, isolacionistas[14], que servem apenas para aumentar a desagregação no tecido social da humanidade e vulnerabilizar o princípio da fraternidade.[15]
O Estado Socioambiental de Direito, por fim, no âmbito das suas três funções (executiva, administrativa e judicial), deve, observados os princípios da precaução e da prevenção, priorizar à vida ao lucro; a visão de longo prazo ao imediatismo; o público ao privado; o comunitário ao utilitário: e, a generosidade à avareza. A experiência do combate à pandemia da Covid-19 deve fornecer, de modo integrado e integrador, com erros e acertos, as lições necessárias para o enfrentamento das crises do aquecimento global e da perda da biodiversidade em que estamos igualmente imersos e que irão, sem sombra de dúvida, caminhar para um agudo agravamento se nada for feito nos próximos anos.
A guinada da economia calcada nos combustíveis fósseis para a economia verde, movida pelas energias renováveis, precisa ocorrer imediatamente, observados os compromissos assumidos pelos signatários do Acordo de Paris e, igualmente, os 17 objetivos e as 179 metas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. O engajamento das nações, da sociedade, das empresas e dos indivíduos é fundamental para a concretização de um mundo descarbonizado e rico (no aspecto da qualidade de vida e da felicidade) nestes tempos incertos de mudança do clima, de perda da biodiversidade e de pandemia.
[1] SUMMERS, Lawrence. Covid-19 looks like a hinge in history. In: Financial Times. Disponível em: https://www.ft.com/content/de643ae8-9527-11ea-899a-f62a20d54625. Acesso em: 15.05.2020.
[2] WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO recommendations to reduce risk of transmission of emerging pathogens from animals to humans in live animal markets or animal product markets. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/coronavirus/who-recommendations-to-reduce-risk-of-transmission-of-emerging-pathogens-from-animals-to-humans-in-live-animal-markets. Acesso em: 15.05.2020.
[3] Sobre o fenômeno do spillover, ver o clássico: QUAMMEN, David. Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic. New York :W.W. Norton & Company, 2012.
[4] Para uma visão mais aprofundada do princípio da precaução na era das mudanças climáticas e do aumento das catástrofes, ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres).3a. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.
[5] Sobre os vieses comportamentais, ver: KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. New York: Farrar, Strasuss e Giroux, 2011.
[6] KRUGMANN, Paul. The Covid-19 Slump Has Arrived. In: The New York Times. https://www.nytimes.com/2020/04/02/opinion/coronavirus-economy stimulus.html?searchResultPosition=5. Acesso em: 10.04.2020.
[7] Desde o início da pandemia do novo coronavírus, os países têm tomado várias iniciativas para conter o avanço da doença. A maioria delas são baseadas no diploma mais importante no âmbito do direito internacional no combate as pandemias, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI). Esse documento indica em quais situações se deve tomar medidas como a restrição nas fronteiras ou a quarentena, por exemplo.O RSI é um instrumento jurídico internacional vinculativo para 196 países, que inclui todos os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) — entre os quais, o Brasil. O documento estabelece conceitos e ferramentas a serem usados pela comunidade internacional para detectar precocemente e responder aos graves riscos à saúde pública que têm o potencial de atravessar fronteiras e ameaçar os seres humanos em todo o mundo.
[8] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Onu mostra que 1 milhão de espécies de animais e plantas enfrentam riscos de extinção. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-mostra-que-1-milhao-de-especies-de-animais-e-plantas-enfrentam-risco-de-extincao/. Acesso em:23.07.2019.
[9] UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME – (UNEP). Intergovernmental Panel on Climate Change. Global Warming of 1,5C. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/sr15/. Acesso em: 22.04.2020.
[10] WORLD METEOROLOGICAL ORGANIZATION. Earth Day highlights Climate Action. Disponível em: https://public.wmo.int/en/media/press-release/earth-day-highlights-climate-action. Acesso em: 14.05.2020.
[11] Ver: LOVELOCK, James. A Rough Ride to the Future. London: Penguin Group, 2014. p. 169.
[12] INTERNATIONAL RENEWABLE ENERGY AGENCY.
Renewable Energy Can Support Resilient and Equitable Recovery. Disponível em: https://www.irena.org/newsroom/pressreleases/2020/Apr/Renewable-energy-can-support-resilient-and-equitable-recovery. Acesso em: 14.05.2020.
[13] GUTERRES, António. A Time to Save the Sick and Rescue the Planet. In: The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/28/opinion/coronavirus-climate-antonio-guterres.html?smid=fb-share&fbclid=IwAR0TBid8sUXgpBuc_zWkC_W-HDGajG-Da0DT6uJTuIvbXzJzGwl5L9OSUoM. Acesso em: 14.05.2020.
[14] Joseph Stiglitz defende uma ação conjunta e coordenada das nações para o combate à pandemia. WORLD ECONOMIC FORUM. World Leaders Must Unite in Tackling COVID-19, says Joseph Stiglitz. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2020/04/internationalizing-coronavirus-covid19-globalization-leadership. Acesso em: 10.04.2020.
[15] Sobre o princípio da fraternidade e sua relevância, consultar a recente e paradigmática obra do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca (STJ): FONSECA, Reynaldo Soares da. O princípio constitucional da fraternidade: seu resgate no sistema de justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.
Fonte: ConJur
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Jonathan Spagnoli
É acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia - Mestrado Profissional da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Faveni. Bacharel em Direito pela Unicesumar. Possui Certificação de Especialista Java EE 6 Enterprise Architect Oracle Sun Microsystems, Microsoft Certified Systems Engineer, Zend Certified Engineer, Certified Ethical Hacking. Atuou como Desenvolvedor de Sofware no CPD Sul do Grupo New Holland Brasil, Professor do Curso de Extensão da Faculdade UNIMEO - CTESOP em Assis Chateubriand. Instrutor em diversos cursos de tecnologia e computação.