Nosso publicismo (endêmico e acadêmico) é um caso sério. E seriíssimas são as suas verdades canônicas e dogmáticas. A primeira e a maior delas, a insuflada supremacia do interesse público e seu caráter indisponível. O que é isso, no entanto, ninguém, rigorosamente, nunca soube dizer – não, ao menos, de modo satisfatório, ou sem rocamboles ideológicos. Na prática de nossa vida republicana, quem o diz, em ordem crescente, é a Administração, a Receita Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário.
O indivíduo, não. Este é o gentio e o profano. Ele encarna o capital, o solipsismo. As raízes disso são muito profundas, atávicas, eclesiásticas e, sobretudo, culturais: de birra com o idealismo Europeu, e na busca de uma originalidade tropical, nossos modernistas inventaram, há quase cem anos, Macunaíma e todo o seu ideário quejando, que impregnou de modo silencioso e difuso o nosso imaginário social, embalou o corpo, a mente e a alma de gerações e gerações e agora não sabemos como nos livrar dele e de toda essa desastrosa tradição; engenho e arte, entre nós, viraram malandragem (pobre Camões …). Somos educados, então, a desconfiar e anatemizar o indivíduo e, ao mesmo tempo, a sermos o anti-herói. Como remédio, e reação a isso, o interesse público só podia vir a ser o interesse do Poder Público. Com isso, nosso publicismo integralista – potencializado ao grau máximo com a Constituição Federal de 1988 – nubla-nos a visão de ver que República não é, como tem sido na nossa, para (manter) o Poder Público, mas para proteger, inspirar, promover e expandir o indivíduo. Nós invertemos e sepultamos a lógica da Modernidade e erguemo-nos entre bolsões medievais e arranjos de prevalência de autoridade.
Nesse contexto – sumariamente traçado aqui a título de obiter dictum –, fica fácil, simples e rápido dizer não, de bate-pronto, para muitas aparentes inquietações do espírito. De fato, como admitir-se, v.g., arbitragem sobre tributos, se o Poder Judiciário está aí para, ao fim e ao cabo, resguardar os seus próprios interesses? E – talvez com uma carga dramática ainda mais forte, com mais apelo social e midiático -, como admitir-se, ainda, conciliação em matéria ambiental, tema difuso – concernente a todos – par excellence?
É exatamente isso o que a Rede Sustentabilidade questiona na ADPF n. 592, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal. O texto normativo impugnado é o Decreto 9.760/2019, que alterou o Decreto 6.514/2008. Como argumento, sustenta um caleidoscópio de teses e um abecedário de questões. Afinal – vale aqui um parêntese -, tudo, entre nós, é constitucional; e há princípios para todos os lados e para todos os gostos; e quando não há, inventa-se; há, com efeito, mais princípios no empíreo da Constituição do que estradas circuláveis no chão do nosso país continental; há mais princípios no nosso emaranhado constitucional do que empresas, negócios e empregos circulando no mundo da vida; nesse contexto, todo malabarismo retórico é possível. Espremendo, no entanto, todas as teses da Rede, voltamos, na essência, à velha arenga: o processo administrativo ambiental não admitiria a fase de conciliação, por ser tema de interesse indisponível, embora a própria Lei de Mediação (Lei n. 13.140/2015) preveja sua incidência nessa hipótese, desde que a matéria seja passível de transação.
Este texto, como já se vê, não é um texto acadêmico – ele é direto; nem será um arrazoado judicial. Não dará conta, portanto, de todo o cipoal de questões postas naquela ação de controle concentrado – até porque, recentemente, o parecer emitido pela Advocacia Geral da União, da lavra da Dra. Maria Carla de Avelar Pacheco, assim já o fez, com zelo. Basta-nos, por ora, atermo-nos ao seu núcleo, acima já referido; é sobre esse invencível mantra que, aproveitando o ensejo do tema, pretendemos deixar algumas reflexões.
Começamos, então, pelo final, isto é, pelo elemento pragmático. Arbitragem e, agora, mais recentemente, mediação, antes de mais nada, nasceram – quer dizer, foram resgatadas do ostracismo de quase um século de desuso – para desafogar o Poder Judiciário. A conciliação, não. Esta, agora reforçada com o novo Código de Processo Civil, sempre ineriu à noção de processo; isto é, se há processo, há possibilidade de uma solução consensual. A questão reside sobre o objeto a transigir, se disponível ou não – e aí caímos no velho mantra. Mas por que não estender a salutar sistemática da conciliação para dentro do processo administrativo – perante, portanto, a própria Administração? A promessa constitucional de acesso amplo à Justiça, de fato, como a prática mostra diuturnamente, revelou-se uma ficção, ou não alcançou o resultado prometido: quando ela não demora, ou não vai aos cambulhões, com o julgamento em bloco de miríades processos em listas, julga como quem legisla, numa transnaturação da função judicante – e os expedientes são vários. Já não se julgam mais, hoje, com efeito, casos concretos – isso é cada vez mais raro -, mas, sim, teses abstratas de segundo grau (nós, por outro lado, inveterados advogados, ainda acreditamos que Direito é caso concreto; Direito são os fatos, e as provas, e as circunstâncias, e os textos trocados, e os padrões de conduta).
Depois – ainda na dimensão pragmática -, o maior cliente da Justiça (muito, muito, muito longe dos demais) é o Estado, com todas as suas ramificações, tentáculos e servidores. E o Estado já não dá mais conta de ter que se julgar diariamente, por tudo que não cumpriu (e não faremos aqui a listagem da inadimplência …). Para que, então, arbitragem, mediação e conciliação, se elas, sem a presença do Estado, pouco ou nada contribuirão para mitigar esse déficit de Justiça? Ou a Justiça togada ficaria só para o Estado? Aliás, e aqui voltamos a um ponto que sempre nos intrigou: se a arbitragem também é jurisdição (ou equivalente), e se o árbitro, como todo julgador, deve, comme il faut, ser imparcial e justo ao julgar, isto é, ao aplicar a mesma legislação (no caso de direitos públicos) que o juiz togado aplicaria, porque, então, a priori, se entende que o juiz togado seria mais imparcial e justo? Com base em que se dá essa pressuposição? Já no que tange à conciliação, que nos interessa aqui mais de perto, como invocar o dogma da supremacia do interesse público se ela seria instaurada com e perante a própria Administração Pública (arts. 97-A e 98-A do Decreto n. 9.760/2019), um dos seus guardiães? Qual a coerência teórica, para não nos estendermos mais a respeito, desse argumento? Ademais, a própria Lei n. 7.347/1985, no seu art. 5º, §6º, admite, no âmbito judicial, a celebração de Termos de Ajustamento de condutas em ação coletivas, inclusive em matéria ambiental. E, dentre os legitimados para tanto, constam da lei, além do Ministério Público, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 5, I, III). Como seria, então: caberia transação no âmbito judicial, mas não caberia no âmbito administrativo, o que pouparia as partes e o Poder Judiciário de novas demandas? A Constituição Federal, no entanto, para muito além das garantias individuais do contraditório e da ampla defesa, não distingue entre processo judicial e processo administrativo (art. 5º, LV).
A pragmática, por sua vez, remete-nos ao início, isto é, à filosofia – e só um pouquinho dela não faz mal. Como admitir-se, ainda hoje, o paradigma do público como o da pretensa perfeição? O que ele nos trouxe, e até onde chegamos com ele, sobretudo nesses trinta anos de Constituição Federal de 1988? Até quando perpetuaremos esse modelo punitivista, judicialista, reacionário, retrógrado e, sobretudo, ineficiente? E a judicialização de tudo? Até quando esperaremos o STF definir às quartas-feiras todas as pautas em repercussão geral? Até quando esperaremos que ele diga como deve ser o mundo da vida em relação a tudo? A Constituição é pesada; a Justiça é pesada; o Poder Público é mais do que pesado; e tudo isso pesa financeira e intelectualmente contra a sociedade; mas, principalmente, no campo das liberdades; precisamos ser tutelados em tudo. Não seria mais razoável, numa democracia fundada na dignidade da pessoa, investir na racionalidade? Não seria mais razoável investir na possibilidade de se estabelecer, notadamente em matéria sancionatória, um diálogo sério e responsável com vistas a uma tentativa de solução consensual entre infrator e a sociedade, aqui na figura da própria Administração? Por que excluir, na largada, essa via, como se fora uma proposição herética? No caso de dano ambiental, o objetivo da conciliação não seria o de safar ou perdoar o infrator, mas o de se alcançar, em prol da coletividade, com menos custos, menos tempo, menos burocracia e menos danos colaterais, a solução legal mais eficaz e satisfatória. Isso não atende aos postulados dos princípios constitucionais da eficiência, da – desejada – celeridade, e da racionalidade? Isso também não é constitucional? Até quando levaremos às últimas consequências essa síndrome puída e esgarçada de Maniqueu? Mas esse obsoleto conflito entre a luz e a sombra resistiria, ainda hoje, aos fatos? Será realmente o público, por antecipação, o virtuoso, e o particular, o criminoso? Seja como for, não haverá, sempre, ao fim e ao cabo, o pródigo caminho do acesso à Justiça? O Ministério Público não está aí para isso? O Poder Judiciário não está aí para isso? A questão, pois, é de pensamento; de como se quer pensar, e de como se quer agir.
Por fim, um pouco de técnica, para que os alarmistas não se exaltem. O Decreto n. 9.760/2019, ao dispor sobre a possibilidade de conciliação no âmbito de processo administrativo sancionador, não altera, antes de mais nada, o regime de responsabilidade civil de reparação dos danos, nem elide a obrigação legal de recuperar o meio ambiente (art. 98-C, 2º). Além disso, ele reforça a independência entre as esferas de responsabilidade ambiental, restringindo a possibilidade de conciliação à esfera administrativa. Ademais, o núcleo de conciliação ambiental seria apenas uma etapa no processo ambiental sancionador e não retiraria a competência da autoridade julgadora no julgamento da infração. Por fim, o núcleo de conciliação ambiental poderia apenas apresentar soluções legais para a resolução de conflitos.
Restaria, ainda, nesse debate, um tema sensível, concernente ao princípio da separação de poderes, que roça, por tabela, em questão de competência. A Rede defende que não há lei, no âmbito administrativo, notadamente em matéria ambiental, a prever a possibilidade de conciliação; que essa via, portanto, seria inaugurada só agora, e apenas por decreto. A AGU, por sua vez, sustenta que a Lei n. 9.605/1998 (art. 80) dispõe que a disciplina jurídica do processo administrativo sancionador relativo a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente se dê por decreto; e que, embutida nessa disciplina jurídica, estaria a previsão de conciliação. Cita, ainda, nesse sentido, como linha supletiva, o novo Código de Processo Civil e defende que a conciliação não é exclusividade do Poder Judiciário. Aqui voltamos, após mais uma volta no relógio, ao ponto de partida: a propalada indisponibilidade do interesse público. Quanto a isso, caberia dizer que tal princípio não consta da Constituição Federal (art. 37). Ele é intuído, dito implícito, e, mais certo dizer, especulado e extraído a partir de construções teóricas e, sobretudo, ideológicas. O que há de positivado, nela, como postulado estruturante da República, é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), cuja emanação, enquanto projeção de sua personalidade inserida numa organização de produção, espraia-se às empresas. O que ela contempla, ainda, é o primado do trabalho e da iniciativa privada, também como pilares estruturantes (art. 1º, IV e 170, caput). Conciliar, pois, enquanto responsável ato de racionalidade, tendo sempre por parâmetro as balizas legais reitoras do mérito do conflito – não se trata, pois, repita-se, de perdão –, dimana da própria noção de pessoa (que busca ser) livre, na sua inserção dentro do setor produtivo, e que procura autodeterminar sua vida e responder por seus atos. Sem falar, como já visto, que a lei da ação civil pública admite a celebração de TACs pela Administração em matéria ambiental e a Lei de Mediação prevê sua utilização, inclusive em sede extrajudicial, a respeito de direitos indisponíveis, mas passíveis de transação. Mais uma vez, trata-se de uma questão de pensamento; de como se quer pensar, e de como se quer agir. E caberá ao Supremo Tribunal, também aqui, pensando sobre esse tema, decidi-lo de modo definitivo, oficial e publicístico.
Enquanto ele não o faz, o que restaria dizer? São trinta anos de Constituição Federal – e cem emendas constitucionais já editadas, numa média de 3,3 por ano (e quanto tempo de debate nas casas do Congresso Nacional não se leva para elaborar uma emenda?; quanto capital político não é preciso mobilizar para isso? quanto tempo isso não engessa o país?). Já não terá sido tempo demais para se perceber que esse modelo empolado nos empurra para baixo e para trás com o peso de uma âncora continental? Já não se viu que, em meio a tantos maus fados, singramos numa nau que, para salvar a sua tripulação, despeja no mar a toda hora a avaria grossa? Dignidade da pessoa humana é pura retórica constitucional – ou ao menos nisso se converteu. O público, na prática, vale mais. O coletivo – que não tem rosto, nem responsabilidade – vale mais. O partido, esse, então, vale muito mais. Associações, ONGs etc, tudo vale mais in terrae brasilis. Até o sindicato, em franca decadência e descrédito mundial, aqui ainda vale mais. Enquanto não se investir e acreditar no indivíduo, enquanto não apostarmos na pessoa – capaz de criar coisas belas e também de assumir os seus erros e responder por eles -, seremos isso que somos hoje e que nunca deixamos de ser. Modernidade é o combate e a superação da superstição, do obscurantismo e do dogma. E não há, entre nós, dogma mais obscuro que o do nosso publicismo. Precisamos de uma nova literatura; precisamos, urgentemente, absorver o ideal emancipatório da Modernidade (o Eu, senhoras e senhores, não é pecado!); nem que seja gradativamente, e aos poucos. Quando se decide por não fazer, ou por não se fazer por si, ou por desfazer o que fora feito – como era o lema da nossa antropofagia tupiniquim -, um terceiro vem ocupar esse espaço vazio do ócio; essa é a nossa tradição política vulgar; este foi, e continua a ser, entre nós, o Estado brasileiro – com suas pródigas promessas não cumpridas, de direita e de esquerda, de prover e abastecer a nossa indolência irresignada com o mundo. E quando se defende tout court a lógica do Poder Público, o que se perpetua é a lógica da autoridade, a lógica do Poder, a lógica estatal, a lógica, enfim, paralisante, que torna tudo estátua, como o olhar da Medusa. Não é o clima que faz uma nação – Singapura também é um país tropical; é o governo, a religião e a cultura … (Voltaire, in Comentários Políticos). Aliás, fica aqui, para começarmos, uma singela sugestão bibliográfica – em tempos de pós-Iluminismo (feito pelo Poder Público): que se releia menos Rousseau e mais Voltaire. A vida é de verdade; não é feita nos gabinetes.
Fonte: Justiça & Cidadania.
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Jonathan Spagnoli
É acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia - Mestrado Profissional da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Faveni. Bacharel em Direito pela Unicesumar. Possui Certificação de Especialista Java EE 6 Enterprise Architect Oracle Sun Microsystems, Microsoft Certified Systems Engineer, Zend Certified Engineer, Certified Ethical Hacking. Atuou como Desenvolvedor de Sofware no CPD Sul do Grupo New Holland Brasil, Professor do Curso de Extensão da Faculdade UNIMEO - CTESOP em Assis Chateubriand. Instrutor em diversos cursos de tecnologia e computação.